Entrevista: Tite

Uma conversa franca com o técnico que levou o Corinthians para o Mundial de Clubes no Japão sobre amizade com Felipão, inimizade com Kia Joorabchian, seleção, Neymar, “treinabilidade” e o dia em que ele passou por um rebaixamento na cama

Adenor Leonardo Bachi precisou de 518 dias para ir do inferno ao paraíso. Nos extremos desse período estão dois momentos vividos por ele no Sport Club Corinthians Paulista: a vexaminosa eliminação da pré-Libertadores da América diante do inexpressivo Deportes Tolima, da Colômbia, em 2 de fevereiro de 2011; e a conquista do torneio sobre o tradicionalíssimo Boca Juniors, da Argentina, em 4 de julho de 2012. Era o título que faltava para que Adenor, o Tite, entrasse no rol dos grandes técnicos do Brasil.

A guinada do treinador corintiano só foi possível porque ele contou com um privilégio incomum para os colegas de ofício que atuam no país: ser mantido no cargo depois de uma derrota cheia de significado. No primeiro semestre do ano passado, o Corinthians ainda comemorava seu centenário e sonhava em finalmente conquistar seu mais cobiçado título: a Taça Libertadores da América. Quando esse sonho se converteu em pesadelo no fatídico embate contra o Tolima, as críticas a Tite se agravaram. Torcedores e cartolas pediram sua cabeça. No entanto, Andrés Sanchez, então presidente do clube, bancou a permanência do comandante gaúcho. Dali para a frente, entre goles de chimarrão e bons resultados no Campeonato Paulista (a equipe seria vice-campeã), o técnico foi recuperando a confiança de quem colocara sua competência em xeque. E, com o título do Campeonato Brasileiro, em dezembro de 2011, ele não só a comprovou, mas também caiu nas graças de praticamente toda a nação corintiana. O passaporte para a Libertadores de 2012 havia sido devidamente carimbado. O resto é história.

Tite nasceu há 51 anos na cidade serrana de Caxias do Sul (RS) e começou a carreira de técnico em 1990 no Guarany de Garibaldi, então na Segunda Divisão do futebol do estado. Depois fez um périplo pelo interior, passando por Caxias, Veranópolis (onde conquistou seu primeiro título, o de campeão gaúcho da Série B, em 1993), Ypiranga de Erechim, Juventude, novamente Caxias, e, enfim, chegou a um clube entre os chamados “grandes” – o Grêmio de Porto Alegre. Nele, ergueu seu primeiro troféu nacional, o da Copa do Brasil, em 2001. O adversário? O Corinthians do consagrado Vanderlei Luxemburgo. Foi ali que seu trabalho passou a ser prestigiado para além das fronteiras sulistas. Na sequência vieram São Caetano, Corinthians (que ele comandou por 51 jogos antes de ser demitido), Atlético Mineiro (de onde saiu quatro meses antes de o time ser rebaixado), Palmeiras, Al-Ain (Emirados Árabes), Internacional e Al-Wahda (também nos Emirados). Deste último, desligou-se após quatro jogos para voltar ao Corinthians, onde está desde outubro de 2010.

Técnico mais longevo do país entre os que disputaram o último Campeonato Brasileiro (está há dois anos e dois meses no cargo), estudioso do futebol e dono de um salário estimado em cerca de 500 000 reais por mês, o católico Tite detesta falar de dinheiro, mas adora prosear sobre táticas e “treinabilidade”, neologismo que deixou escapar em uma entrevista coletiva em 2011 e que até hoje permanece colado à sua figura. A forma como costuma se expressar – com palavras rebuscadas e tom professoral, embora seja notório seu esforço para atenuá-lo – é, em parte, fruto do tempo que passou sentado nos bancos acadêmicos. Ele fez duas faculdades: comunicação social na Universidade de Caxias do Sul (UCS), que não chegou a completar, e, depois, educação física na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas, no interior paulista.

O editor Ricardo Arcon esteve com o “professor” Tite em duas ocasiões, ambas no Centro de Treinamento Joaquim Grava, no Parque Ecológico do Tietê, na Zona Leste de São Paulo. Os dois conversaram por 3 horas e 17 minutos, em um espaço destinado à imprensa, em frente a um dos campos do CT. “Ele ‘fala muito’ no sentido de ter sido um bom entrevistado”, atestou o jornalista, apropriando-se da expressão usada pelo técnico e ex-jogador durante uma discussão à beira do campo com o colega Luiz Felipe Scolari no clássico contra o Palmeiras no Paulistão de 2011.

A um mês de estrear no Mundial de Clubes da Fifa (disputado entre 6 e 16 de dezembro no Japão), torneio no qual o Corinthians precisa bater um adversário (indefinido até o fechamento desta edição) para fazer a final provavelmente contra o Chelsea, da Inglaterra, Adenor Bachi recebeu com simpatia o enviado da PLAYBOY. Simpatia que procurou manter ao longo da Entrevista, mesmo nos momentos em que foi instado a discorrer sobre questões supostamente delicadas, como o fim das torcidas organizadas nos estádios e o rebaixamento do arquirrival Palmeiras, que se confirmou em 18 de novembro.

Tite, se você responder a esta primeira pergunta com absoluta sinceridade, tem o meu aval para dizer qual quer absurdo sem ser contestado por toda a Entrevista. Você também torceu para o Palmeiras cair? Não. Falo isso sem a pretensão de ser bonzinho, exemplo, me colocar acima do bem e do mal. Absolutamente. Há grandes pessoas e grandes amigos dentro do Palmeiras. Pela passagem que tive no clube, a gente acaba se identificando. Torci para o Palmeiras permanecer [na Primeira Divisão do futebol brasileiro].

E os jogadores do Corinthians? Só posso falar por mim. Dentro do campo da rivalidade, às vezes existem conflitos individuais, problemas pontuais. Um jogador fala algo em determinado momento, aí o outro vai lá e responde. A rivalidade é muito grande.

Mas esse papo de que a queda de um “grande” é ruim para o futebol pode soar demagógico quando vem de um arquirrival… Politicamente correto, né? Mas falo disso de uma forma muita aberta. Já tenho maturidade para tal.

Como é possível um clube tão grande e tradicional como o Palmeiras passar por essa situação duas vezes em um intervalo de apenas dez anos? Veja o equilíbrio e o grau de dificuldade do Campeonato Brasileiro. Às vezes tu não consegue retomar a confiança, o ritmo da equipe na hora em que tu quer. Neste ano, o Palmeiras foi campeão da Copa do Brasil, e nós vencemos a Libertadores. Quando acabaram as duas competições, onde os dois estavam? Zona de rebaixamento do Brasileirão. E aí você tem de apressar todo um processo de recuperação porque senão a confiança se esvai, tu perde o ritmo. As coisas acabam acontecendo pelo grau de dificuldade, pelo equilíbrio técnico da competição.

E quem é o responsável por esse processo de recuperação? É o técnico, a consciência dos atletas, a mobilização da direção, o entender por parte do torcedor. O conjunto da obra.

O que é pior: ser rebaixado para a segundona ou broxar? [Longa pausa.] Puta que pariu! [Risos.] Broxar é mais rápido, tu endurece em seguida. Rebaixamento demora um ano para voltar. O rebaixamento é um momento em que tem de ter muita dignidade, muita força. Tem de ter uma escala de valores. É fácil estar ganhando e manter sua correção e seu trabalho.

Já aconteceu com você, então… Tanto um quanto o outro. Quer dizer, foram uns 40% em relação a rebaixamento e 100% em relação a broxar.

Dê mais detalhes sobre “o broxar”. Aconteceu numa das primeiras vezes. Ejaculação precoce e broxar acontecem no começo, né? A tensão, a excitação, aquela ansiedade toda… Mas, depois que relaxei um pouquinho, conversei, dei um tempo, aí a coisa fluiu de forma natural.

Depois, na vida adulta, nunca mais falhou? Que eu me lembre, não. Posso estar sendo aqui “o cara”, mas…

A resposta sobre o Palmeiras pareceu sincera. Você está no seu direito. Nem vou contestar. Não, pode contestar! Porque, se tem alguma coisa com que trabalho legal, é com a verdade. Já passou a época de eu querer esconder as coisas.

Vamos, então, para a pergunta clássica da PLAYBOY: como foi a sua primeira vez? Um colega meu, o Wanderley [com quem Tite jogou no Caxias nas categorias de base], apareceu com duas meninas, amigas dele, de uns 20 e poucos anos. Eu estava no colégio. Ele chegou para mim no intervalo da aula e disse: “Tá armado. Tem esquema armado. Vamu?” Falei: “Vambora!”

Você tinha quantos anos? Tinha 16. Lembro que a dele era muito boa, e a minha, muito ruim. Depois ele veio me chamar para uma segunda vez com elas. Disse a ele: “Wanderley, vai te catar, vai-te embora. Eu, com a minha, fico é olhando para a tua, que é uma puta de uma gata!” Não fui, não. Dias desses, conversei com ele a respeito. Estávamos almoçando, e tinha gelatina, frutas, bolo, mousse. Comentei: “Isso aqui está parecendo lá no início. Tenho de comer a gelatina, mas vou ficar pensando em comer a mousse [risos].”

Tite, você virou um popstar depois da conquista da Libertadores. Já se sente à vontade na posição de ídolo? Não me vejo dessa forma. Tento manter a naturalidade, a sinceridade, meu jeito de ser. Outro dia minha filha comprou uma revista em que estou na capa como uma das pessoas mais influentes do Brasil. Perguntei: “E, aí, Gabriele [a caçula de Tite], tu sentiu orgulho do pai?” Ela respondeu: “Claro”. Mas, para nós, isso tudo é natural. Essas coisas não vão mudar nosso jeito de ser, autêntico. Vou errar como qualquer ser humano erra.

Mas, para a torcida corintiana, ou para boa parte dela, você é o herói. Não considero assim. Passamos por uma série de situações difíceis. Isso deixa minha cabeça tranquila em relação a comentários do tipo: “Esse é ‘o cara’”. Um grande clube te traz uma exposição muito grande. Falo para o pessoal: “Não importa o quanto vença, não te considere ‘o cara’; assim como, se perder, não te considere ‘o culpado’”. Nós somos uma equipe, vamos sempre vencer ou perder juntos.

O Corinthians foi campeão da Libertadores sem ter grandes estrelas, mas tinha um padrão de jogo, estava unido e demonstrou maturidade emocional. Nesse sentido, não é falsa modéstia negar que tenha sido o principal responsável pelo título? Nesse sentido, sim. O equilíbrio emocional, a maturidade em momentos decisivos… Eu me considero o cara que, em termos emocionais, trouxe uma experiência muito forte? Sim. Nesse aspecto e também no aspecto tático eu trouxe uma experiência. Então, se tu pegar, em termos pontuais, a organização tática e o preparo psicológico, o.k. Mas o clube trouxe na parte de estrutura; e o atleta, na qualidade técnica individual e na parte física.

Você foi içado à condição de um dos melhores técnicos do Brasil só depois de conquistar a Libertadores, mas já tinha no currículo títulos estaduais, uma Sul-Americana, uma Copa do Brasil, um Brasileiro… A justiça, no seu caso, tardou, mas não falhou? Não me tornei um grande técnico em seis meses, não me tornei uma grande pessoa em seis meses. Não foi o fato de ter sido campeão brasileiro e campeão da Libertadores que me fez ser um grande técnico. Eu já era. Talvez não tivesse o reconhecimento. Não tinha o carimbo que o título da Libertadores te dá, mas, os trabalhos, eu já tinha.

Existe algum técnico brasileiro melhor do que você no momento? [Suspiro.] Existem grandes técnicos no futebol brasileiro. Os melhores no momento, devido ao trabalho e aos títulos, somos eu e o Abel [Braga, campeão brasileiro pelo Fluminense em 2012]. E não é porque ele é meu amigo. É porque fez um Brasileiro fodido, Libertadores também. Fora o reconhecimento que ele traz com um título mundial [Abel foi campeão mundial com o Internacional em 2006]. Campeão mundial a gente conta nos dedos. Então, eu e o Abel somos os dois profissionais que estão fazendo os melhores trabalhos, não que sejamos os melhores.

Falando em técnico, foi o Felipão [Luiz Felipe Scolari] quem lhe deu o apelido de Tite? Foi assim: eu estudava [na década de 1970] no colégio Emílio Meyer [em Caxias do Sul] e fui jogar contra a escola treinada pelo Luiz Felipe, o Cristóvão de Mendoza. O jogo foi no campo do Caxias, time em que o Felipão jogava. E lembro que joguei bem. Dias depois da partida, comecei a trabalhar como office-boy numa agência de carros. Nessa época, eu estava treinando no juvenil do Juventude, como zagueiro, mas não queria ser zagueiro. Por isso comecei a trabalhar. Um dia o Felipão chegou à agência para ver um carro. Ele me viu e disse: “Guri, o que tu tá fazendo aqui?” Respondi: “Trabalhando. Vou ajudar a família”. Ele emendou: “Você não quer jogar no Caxias? Tem uma oportunidade no meio-campo”.

E aí? Aí ele falou que o técnico, o Paulinho, ia me aguardar por lá num sábado. Bom, meu apelido no colégio era Ade, e tinha um colega meu, que também jogava no time da escola, cujo apelido era Tite. Acho que o Felipe disse para o tal do Paulinho: “Vai vir te procurar um moleque de quem não lembro o nome direito, mas acho que o apelido é Tite”. Ele fez confusão. Quando cheguei ao Caxias para treinar, o cara perguntou meu nome. Eu disse que era Adenor, mas que me chamavam de Ade. Só que ele começou a me chamar de Tite, e aí pegou.

Então o Felipão o levou para o Caxias, onde você se tornou profissional e jogando no meio-campo, como queria. Você não acha que deve essa a ele? Devo muitas a ele. Quando ele já era um técnico campeão pelo Grêmio, eu ligava para a casa dele, perguntava para a esposa dele se ele tinha 10 minutos. Fui atendido muitas vezes. Eu estava iniciando a carreira de técnico e queria saber que tipo de trabalho tático ele fazia. Queria saber como era o posicionamento de bola parada, se era misto, se era marcação individual, se era marcação por setor. Eu enchia o saco! Tenho uma gratidão muito grande por causa disso.

Você se arrepende daquele episódio do “fala muito”? Não, não. O “fala muito” foi uma forma de dizer o seguinte: “Tu está defendendo o teu, e eu vou defender o meu”. Aí pegaram a frase, pinçaram do contexto. Eu estava defendendo meu emprego, meu clube. As pessoas com quem trabalho são leais a mim. Então vou com unhas, dentes, tudo o que for possível. Se alguém estiver passando daquilo que entendo ser o justo, vou brigar.

Gostaria de voltar a ser amigo do Felipão? Tem de ser natural, tem de vir de forma espontânea. Senão é hipocrisia, é o politicamente correto. Não sou politicamente correto, sou autêntico.

A profissão de vocês é de altos e baixos. Como lidar com essa instabilidade? Isso se deve às pessoas que fazem uma avaliação de forma oportunista. É preciso uma mudança de mentalidade, tanto por parte dos dirigentes como da imprensa. O futebol é uma atividade profissional como qualquer outra, precisa de início, meio e fim. É preciso tempo para que os resultados aconteçam. Quem é oportunista vai mudar de opinião de uma hora para a outra. O cara precisa avaliar o trabalho que você desenvolveu ao longo da carreira.

Você passou por momentos difíceis no Corinthians. O pior deles foi a eliminação na pré-Libertadores de 2011… Foi.

Andrés Sanchez, que era presidente do clube à época, foi corajoso em bancar sua permanência? Muito, pô! É claro que ele não tinha certeza de que a gente pudesse reverter a situação. Mas o Andrés cheira a vestiário. Ele observa. Ouve todo mundo, mas escuta a si mesmo. Aí teve a felicidade de bater o martelo para que eu permanecesse. Sou muito grato a ele.

Você o vê como presidente da CBF no futuro? Todo o sucesso que ele teve no Corinthians o credencia para tal.

Você guarda alguma mágoa da [torcida organizada] Gaviões da Fiel, que chegou a pedir enfaticamente a sua saída do clube depois da desclassificação para o Tolima? Não, porque sei diferenciar o que é crítica de algumas pessoas em vez de generalizar. O Corinthians tem 35 milhões de torcedores. Estou lidando diariamente com pessoas apaixonadas por seu clube. Minha atividade exige que eu compreenda essa paixão. O técnico canaliza todas as críticas. Pô, eu também já reclamei muito! Criticar, pedir para sair, xingar, chamar de burro são coisas para as quais tenho de estar preparado. É humano, é compreensível, é do torcedor.

Tem muita gente que defende o fim das torcidas organizadas nos estádios. O que você acha disso? Pô, cara, é um espetáculo tão bonito ver as organizadas… Mas seria ingenuidade não saber que por vezes existem más pessoas ali dentro. Pessoas que deturpam toda uma ideia de jogo, de ser melhor, de vibrar. Vou ampliar um pouquinho: eu gostaria que fôssemos mais bem-educados e que houvesse no país uma igualdade social maior. Isso se refletiria na conduta da torcida, dos técnicos, dos jornalistas, dos ministros de Estado… Eu trouxe uma resposta mais abrangente, mas não tenho conhecimento para dizer assim: “Está certo tirar as uniformizadas!” Será? Não tenho uma opinião formada.

A ideia de um filho seu pertencer a uma torcida organizada, ir ao estádio no ônibus da torcida, participar de reuniões, esse tipo de coisa, lhe agradaria? Porra, tu tá me botando em saia-justa! [Risos.] Eu gostaria que a organizada do meu filho fosse uma organizada dos amigos dele, que ele fosse ao campo com os amigos dele. Essa seria a organizada que eu gostaria que ele frequentasse.

A torcida do Corinthians tem mesmo um quê de especial? Ela é diferente das outras? É diferente, sim. Por quê? Porque, durante os mais de 90 minutos, ela apoia, passa energia. Nunca vi uma torcida que toma um gol e começa a gritar e a cantar seu hino, empurrando a equipe. Isso contagia, arrepia. A torcida do Corinthians é impressionante. E ela cobra tanto quanto ou mais do que as outras grandes torcidas.

É possível chegar ao comando de uma seleção brasileira como treinador e trabalhar sossegado sem ser um cara político demais, sem se curvar às exigências da direção? É possível chegar lá só com trabalho? É possível, sim. É claro que a gente tem de ter maleabilidade para não colocar os objetivos pessoais acima das ambições do clube ou de uma CBF. Em qualquer área é preciso ter bom senso de avaliação e de observação. Não estou falando de vencer a qualquer custo, de abrir mão de princípios. Conduta pessoal é inegociável. Agora, quando o assunto são objetivos importantes para a entidade, tem de ter inteligência para conjugar.

Em seus 23 anos à frente da CBF, Ricardo Teixeira fez mais bem ou mais mal ao futebol brasileiro? Não tenho condições de dimensionar. Não estive no dia a dia, não estive à mercê do comando dele. O comando era mais secundário, em cima do futebol brasileiro de uma maneira geral. Seria muito fácil criticá-lo e falar o que poderia ter sido melhor. Tenho informações de que ele dava muita autonomia ao comando da seleção, ao trabalho ligado ao futebol. Ouvi o Dunga [ex-técnico da seleção] e outros profissionais que passaram pela seleção falarem a respeito. Mas, daí a elogiar, daí a criticar, pô, seria leviandade da minha parte.

A seleção de hoje tem pinta de campeã mundial? Hoje ela está num processo de reconstruir. Tomara que… A seleção passou por um período de transição. A Alemanha fez isso quatro anos atrás, a Espanha fez isso. Há uma nova geração, uma nova safra, a seleção está se reconstruindo.

Se recebesse hoje um convite para ser técnico da seleção brasileira, você se sentiria preparado para enfrentar o desafio? Recebendo o convite em 2014, eu diria que sim. Sempre falo isto de uma forma muito sincera: é preciso deixar as pessoas terminarem seu trabalho. Termina o trabalho em 2014, é o ciclo, aí se pensa na continuidade do técnico, se pensa no Tite surgindo, se pensa em todos os outros profissionais de qualidade que temos. Eu não gostaria que fosse agora. Palavra de honra.

Qual é sua expectativa em relação ao Neymar na Copa? O Neymar é craque. A capacidade de improviso que ele tem é impressionante. E, fisicamente, tomara que ele se mantenha assim, não vire um robozão forte. A mudança de direção, as acelerações, as freadas e, claro, a qualidade técnica, isso tudo é o que o faz diferente. E ele vai amadurecer com o tempo. Isso é natural, é humano, é compreensível. Tomara que ele amadureça junto com toda a equipe do Brasil. Tomara que ele cresça bastante e se torne ídolo também.

Neymar pode ser em breve o melhor jogador do mundo, ou ainda falta muito chão para ele chegar a um Messi? Neste momento, não dá para comparar. Isso não é depreciar, absolutamente, mas é que são gerações diferentes. Há quanto tempo o Messi está no Barcelona? Quantos anos ele tem? O que já disputou? O principal jogador brasileiro, tecnicamente falando, é o Neymar. E o melhor do mundo é o Messi, que já passou do estágio de craque. Craque é só dentro do campo. O Messi é ídolo. Pô, o que esse cara é como atleta e também como pessoa… Um cara que diz: “No final da minha carreira, eu quero, sim, ser reconhecido como um grande atleta, mas quero também ser reconhecido como uma grande pessoa, uma pessoa de princípios”… O cara que fala isso está num plano de gente muito elevada.

Em agosto deste ano, após uma derrota do Corinthians para o Santos, você sugeriu que Neymar era mau exemplo para as crianças por “simular situa ções”, ou seja, simular faltas. Você falou aquilo de cabeça quente? Falei no calor típico de fim de jogo, mas muito consciente. Nesse processo de amadurecimento do Neymar, ele vai saber sustentar mais a marcação, ficar mais de pé, trazer o benefício para ele. A maturidade vai trazer esse bom senso. Olha, não tenho a pretensão de dar uma entrevista para dizer o que ele tem de fazer. Disse naquele momento porque ele era meu adversário. O Neymar tem de seguir seu próprio rumo, aquilo que ele acha que convém. Existem as pessoas próximas: o Muricy [Ramalho], que é seu técnico, os diretores do Santos, os colegas, o pai. Eu quero o bem dele, torço pelo bem dele.

Muita gente diz que o futebol sem esse tipo de artimanha, a de simular falta, ficaria chato demais. Você concorda? Não, absolutamente. Tem falta aí rolando solta, pô! A gente está falando de simulação. Simulação é igual a enganar. Enganar é igual a jeitinho brasileiro. Tem de parar com esse negócio de querer levar vantagem em tudo. Já passou esse tempo. A gente está num nível de elevação e de educação já mais avançado.

Recentemente o Palmeiras esteve envolvido em uma polêmica causada por um gol de mão do atacante Barcos, que foi validado e depois anulado. O que você acha de interferências externas no futebol, sejam humanas, sejam tecnológicas? Tudo o que dê justiça e correção ao jogo deve ser executado. Recurso tecnológico, sim. Recurso humano, sim. “Ah, mas tem de haver uma adaptação…” Sim, tem. Mas é uma evolução natural. O árbitro carrega um peso muito grande de responsabilidade. Tive a real dimensão disso quando, num clássico no Pacaembu, ouvi os árbitros gritando assim: “Puta que pariu! Porra, nós apitamos pra caralho, nós apitamos muito!” Gritando. Olha como é a pressão que eles sofrem! Eles querem ser justos, querem acertar, só que a velocidade do jogo é muito grande. Tu precisa estar num condicionamento físico muito grande e com o nível de concentração muito alto. Se dormir mal, tu não consegue se concentrar. Uma fração de segundo faz com que tu erre. Um erro vai gerar um título. É muita responsabilidade.

Tite, outro dia você disse que tem inimigos. Kia Joorabchian [mandachuva da ex-parceira corintiana MSI e responsável pela demissão do técnico em 2005] é um deles? Já foi. Hoje são duas pessoas que seguem seu próprio caminho.

Sua demissão do Corinthians se deu em que circunstâncias? Nós perdemos para o São Paulo [por 1 a 0 no Campeonato Paulista de 2005]. O [goleiro] Rogério Ceni me derrubou… [Risos.] Ele pegou o pênalti do [lateral] Coelho. Eu botei o Coelho para bater, e não o [atacante] Tevez. O Kia ficou resmungando disso no vestiário. Mas, na verdade, houve um acúmulo de situações.

O Kia deu piti no vestiário? Não, absolutamente. Ficou falando num cantinho, indo num jogador, no outro, bisbilhotando. Mas não levantou a voz para ninguém, não. Aí eu disse a ele: “Se você tem de falar alguma coisa, se não está satisfeito, me chama numa sala e fala tudo. Aqui dentro do vestiário não é local para ficar de tititi”. Hierarquia é assim: chame a pessoa e diga as coisas claramente.

Você ficou com vontade de enfiar a mão na orelha do Kia? [Gargalhada.] Dentro do vestiário, minha orelha ficou “vermelhona”. O [goleiro] Fábio Costa, que é um cara intempestivo, me agarrou na cintura e disse: “Calma, professor. Calma, que nós precisamos do senhor”. Eu falava: “Tô calmo, tô calmo”. Mas estava no meu limite [risos].

Você tem recebido convites para treinar times europeus? Europeus, não. De outros lugares, sim. Mas não abri nenhuma possibilidade para o Gilmar [Veloz, empresário do técnico]. Não quero nem conversar.

Sair do Corinthians antes do término do contrato é uma possibilidade? Não faz parte da minha ideia.

Vamos falar sobre sua carreira de jogador. Você era bom de bola? Minha parte mental era muito melhor do que a parte física. Eu pensava rápido, mas executava num ritmo menor. Isso me deixava puto da cara. O futebol estava muito mais na minha cabeça do que no meu corpo. Isso ficou ainda mais evidente depois que me machuquei.

De 1984 a 1989 você passou por seis cirurgias de joelho. Teve de encerrar a carreira por causa delas, não foi? Foi. Estourei os dois joelhos.

Você, um católico, procurou algum método alternativo para se curar? Cirurgia espiritual, alguma coisa assim? Quando me ofereceram, mandei os caras pra puta que pariu. De tudo que tu imagina, apareceu. Tudo! Quando o cara está mal, tem solução mágica para tudo.

Sua carreira de jogador durou só 11 anos. Você não chegou a pensar em desistir do futebol e viver de outra coisa? Cheguei. Fiquei frustrado, revoltado. Na época da minha última cirurgia, cheguei a questionar Deus: “O que eu fiz para merecer isso?” Pô, tinha melhorado de um joelho, e aí estoura o outro? Depois que me formei em educação física, pensei em viver lecionando.

E como pintou a chance de virar técnico? Eu tinha passado num concurso para ser professor. Estava aguardando a nomeação. Aí um colega, chamado Celso Freitas, que tinha jogado futebol comigo e se tornado técnico de um time da Segunda Divisão, o Guarany de Garibaldi, me pediu um favor. “Tite, vai lá, condiciona fisicamente a equipe e joga para nós.” O campo era um tapete, os treinos aconteciam depois da 6 da tarde, então ele me convenceu. Joguei uns dois, três jogos, meu joelho inchou, e eu disse que não ia mais jogar. Pouco depois o Celso saiu, e o diretor do clube pediu que eu ficasse como técnico até o fim do campeonato. Aceitei. Em cinco jogos, ganhamos quatro. Aí pensei: “Opa, isto aqui é legal!”

Você treinou o Grêmio, depois o Inter; o Corinthians, depois o Palmeiras. Essas mudanças não trazem

fantasmas para a cabeça do técnico? Ô! É uma pressão muito grande. Uma rivalidade muito forte. Quando  surgiu a possibilidade de eu ir para o Internacional, torcedores do Grêmio me ameaçaram. Disseram que, se eu fosse, seria um traidor, e que conheciam minha rotina, a rotina da minha família. Claro que não foi a torcida do Grêmio, e sim algum maluco da cabeça. Mas fiquei com muito medo e atento. Relutei um pouquinho para aceitar o convite porque temia por isso. Só fui porque a minha família se reuniu e disse: “Tu ambicionou muito ser técnico do Inter, tu disse que o Inter tem uma grande estrutura, um grande grupo de atletas, e tu não está querendo ir por causa desse medo?!?”

Você acompanha o que a imprensa especializada diz a seu respeito? Sim, mas antes era de uma forma mais assídua. Depois amenizou, até por causa do meu jeito de ser. Eu me conheço: se alguém passar alguma informação que não é verdadeira, vou ficar com essa pedra no bolso e devolver na primeira oportunidade. Opinião, tudo bem, mas o que me deixa “P” da vida é erro de informação. Tipo: “Olha, teve briga no vestiário e o Tite teve de intervir”. Pô, não planta!

Tite, uma dúvida semântica: como você forjou o seu vocabulário, o “titês”, que inclui palavras difíceis como a famosa treinabilidade? [Risos.] Não sei como aconteceu. Fluiu. Ele é fruto de um cara que é ex-atleta, que fala palavrão, que tem seu sentimento… Eu sou assim. Quando é para falar em termos técnicos, vamos falar, de flutuação, de 4-2-3-1, de posição-função… Os caras veem: “Pô, o cara não caiu de paraquedas na atividade. Estudou!” Agora, treinabilidade e churrascabilidade eu conheço. Mas, praiabilidade e esses outros negócios aí, não.

Como nasceu o termo “treinabilidade”? Um dia eu e o Bruno [Mazziotti, fisioterapeuta do Corinthians] estávamos conversando sobre um jogador, nem lembro quem era. Falei: “É muito pouco tempo de trabalho. Ele precisa treinar mais para eu levá-lo para o jogo”. Então ele concordou: “É, a treinabilidade dele tem de estar…” Ou seja, ele estava se referindo ao número de treinos, a intensidade do trabalho, era isso a treinabilidade. Só que aí fui soltar isso numa entrevista coletiva. Depois disse para o Bruno: “Tá vendo a merda que tu fez? Agora fico eu pagando a conta!” Agora tudo tem “bilidade” no meio. Os “nego” ficam sacaneando.

Vamos falar de dois craques que passaram pelas suas mãos, Adriano e Ronaldo. É triste ver como o Adriano tem conduzido a carreira? Depois do gol que o Adriano fez contra o Atlético Mineiro [no Campeonato Brasileiro de 2011], fiquei num conflito muito grande. Inicialmente eu não ia convocá-lo para o jogo. Fui convencido pela direção e pela comissão técnica. Ninguém sabe disso. Não sei se ele merecia, mas cheguei à conclusão de que a equipe do Corinthians merecia que ele estivesse no banco porque nós não tínhamos nenhum jogador com aquela característica. Fiquei convencido de que eu tinha de olhar a individualidade, mas tinha de olhar também a equipe toda do Corinthians. E aí o Adriano entrou, fez o gol, e vencemos.

E a forma como ele tem conduzido a carreira? As pessoas que avaliem.

Contra o Tolima, você ainda tinha o Ronaldo em campo, já visivelmente fora de forma. Você acha que ele vai conseguir voltar a ser fininho ou é um caso perdido? Olha, poder trabalhar com ele foi extraordinário. A capacidade de finalização desse rapaz era incrível. Incrível! Eu ficava pensando: “Imagina se eu tivesse pego esse cara fininho…” Aquele jogo contra o Santos [na final do Campeonato Paulista de 2009], que ele dá a cavadinha… [Ronaldo faz um gol encobrindo o goleiro.] Ele antevê a jogada, não olha. O Ronaldo conseguia fazer uma leitura antes de todas as outras pessoas. Isso é talento puro. Agora, respondendo à pergunta, acho que é um caso perdido. [Risos.] Que ele vai afinar um pouquinho, vai, mas não vai chegar àquele de 2009, o da cavadinha

Via Revista Playboy

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